Má Educação
- J. Lino

- 15 de out. de 2024
- 5 min de leitura
(E isso não é um filme do Almodóvar)

O que a música de péssima qualidade tem a ver com a educação no Brasil das últimas décadas? E a sujeira nas ruas? E o vocabulário chulo e ultra sintético, incapaz de ler e interpretar textos mais longos e complexos? E a ausência de grandes novos autores e pensadores? E a corrupção crônica inimputável? E o surgimento dos influencers desqualificados? E por que estou falando disso se não sou educador?
A resposta está na pergunta: a má educação de base e o excesso de tecnicismo e especialismo do ensino médio e superior.
Apesar de expoentes como Anísio Teixeira, Paulo Freire, Anália Franco e Dorina Nowill (para ficar entre os mais conhecidos), a educação no Brasil tem viés de utilidade, servindo ao momento político de cada reforma, sem um contexto maior de cultura e sociedade. Uma sociedade brasilianista raiz e sincrética, talvez, como pretendida desde 1922 pelo movimento de Arte Moderna.
Inúmeras nações se reinventaram pela educação nos últimos 50 anos, como: China, Cingapura, Coreia do Sul e Japão, na Asia; Estônia, Finlândia, Polônia e Irlanda, na Europa; Canadá, Chile e Uruguai, nas Américas, a partir de uma identidade nacional (não exatamente nacionalismo). Infelizmente não vê nenhum país africano no ranking mais recente da Economist Intelligence Unit (EIU), e o Brasil está na 39ª posição, bem atrás de seus vizinhos e de economias menos pujantes.
Lá, nos mais pujantes, possivelmente um aluno que se preparasse para ser bem colocado no ENEM daqui, não seria bem avaliado. O Brasil insiste na metrificação da memória e não na capacidade de resolver problemas e criar soluções originais, tampouco na metodologia de ciência ou na lógica filosófica, ou sequer na matemática imaginativa. Isso para não falar de arte, música, literatura, história e afins.
Voltemos a Paideia grega que gerou Sócrates, Platão e Aristóteles, e antes deles Péricles, e depois Alexandre Magno. Será coincidência? Será genética? Será a geografia? Ou será a educação de qualidade? Basta pensar que os Persas tentaram por inúmeras vezes, sem conseguir, vencer os gregos, confinados em ilhas e em menor quantidade de soldados, mas todos eles cultos e aptos em múltiplos saberes, além das batalhas.
Talvez a intuição de Mario de Andrade esteja correta: temos de tudo nesta terra que tudo dá, então nos resta a preguiça... Não aquela de não trabalhar, mas a de pensar, de empreender, de potencializar os recursos abundantes que temos. Não temos ameaças de guerras, nem furacões ou terremotos. O nosso drama é interno: é o desinteresse de educar-se além do alfabetismo técnico funcional.
Nossas profissões são hiper dependentes da burocracia, do trabalho de repetição e subordinação. Nós adoramos ter porteiros, faxineiros, entregadores, motoristas, faz-tudo pelo servilismo e utilidade, sem empatia, sem compaixão, tanto quanto adoramos ter chefes, padrões e comandantes. É um pós-escravismo desumano. É um favoritismo que se impregna de descendente a descendente, perpetuando a aristocracia brega e insossa que temos, e o povoamento de amotinados na ignorância.
Onde foram parar nossas salas de concerto? Que fim estão levando nossas bibliotecas e livrarias? O que aconteceu com os saraus e as exposições de arte não decorativa? Desde quando o carnaval deixou de ter samba para ter enredo patrocinado? Em que locais se encontram os reais pensadores, se já não há cafés filosóficos e bancos limpos nas praças e jardins? Que fim levaram os políticos e juristas que lutaram na Constituinte para que a dignidade humana estivesse antes da delimitação do poder do Estado? A quem pertence hoje a Embraer, o agronegócio, a Amazônia?
Essa distopia nacional só é possível porque falta educação básica e falta cultura, além da técnica. Quem ainda ouve Villa Lobos? Quem leu espontaneamente Vidas Secas, Grande Sertão Veredas, O Alienista? O que se sabe sobre a(s) república(s) e seus desmandos? Como assim chega alguém do nada, agora, e se diz antissistema? De qual sistema se está falando e que solução real possui?
O problema brasileiro é educação de base e o utilismo das políticas públicas! Por isso, recomendo que se volte a ler e ouvir os clássicos: aqueles calhamaços difíceis de entender e de saborear para não iniciados. Que se comece a estudar a arte e a natureza. Que se visite e preserve a natureza, como tal: selvagem, plena, arredia. Esse negócio de controlar e tornar tudo instagramável tem nos feito de idiotas, e não aquele de Dostoiévski: “Posso eu ser idiota agora, se me sinto apto a ver por mim próprio, que todo o mundo me toma por um idiota?”
D. Pedro de Alcântara, o “Bom”, e.g., lutou por livros ao invés de escravos e café; por música, arte e ciência, ao invés da esbórnia de seu pai; por modéstia ao invés da empáfia. Antes faminto que ignorante, já ensinava Diógenes ao magno Alexandre. Gaste-se, então, todo dinheiro que houver com educação! Não para ficar rico ou para ter poder, mas para angariar saberes e viveres (não víveres). Como não se tem educação, em geral, entenderam errado a frase: “primeiro viver, depois filosofar’. Ela é anterior a Hobbes e trata do aprendizado na natureza, na vida harmônica e ecossistêmico, com o saber supostamente útil e que, só depois, maduro, serve à verdadeira utilidade da sabedoria e do bem comum.
É a partir da criança que apenas brinca e sonha (isso ainda existe?) que o conhecimento se funde à ética, por meio de vivências brincantes de ganhos e perdas, indiferentes à derrota, que é parte do jogo e requer solidariedade e persistência. Mas o brincar hoje é precipitado, vigiado, dirigido, e competitivo em excesso, a ponto de ser bullying. A infância hoje é um naco que se rende às estruturas que querem forjá-la ao “Paraíso Perdido”, de J. Milton: “É melhor reinar no inferno do que servir no céu”, embora no fim se sirva ao próprio “inferno” e “ainda sem Deus”, como explicitava Pascal.
Educação é o consenso não dirigido e construído em simetria posições, contrário à indiferença, ao tornar-se útil, e ao buscar-se o gozo narcísico de si mesmo. O mestre é tanto quanto aluno por saber-se também ignorante, como Sócrates. Não há chave, não há caminho, não há verdade suprema alcançável, e nem há cura! O que pode fazer a educação é promover o “cuidado de si e o cuidado do outro”, a fim de que haja alguma dignidade, sem que a angústia se sobreponha, sem que a solidão nos apague, sem a falta repreendida no desejo nos cegue e nos dirija para o arremate da loucura, esta sim possível ali na espreita da distopia do “eu posso, que quero, eu devo, eu preciso”.
Ser bem-educado é preservar-se digno e sadio da alma, em primeiro lugar, e por consequência do corpo. Educar é revelar as janelas iluminadas do mundo por meio das virtudes “do bom, do justo e do belo”, e não disseminar atalhos da escuridão que só produz obsessão pela guerra, pelo poder, pelo domínio, pela posse, pelo gozo infinito. A educação que vemos, no degredo da ignorância coletiva, divide-se entre os extremos do arbitrariedade mandante e da anarquia libertária, sendo que o ser livre é poder escolher ceder sabiamente, lá e cá, em um consenso aprimorável e reflexivo.
Por isso, entre a utopia (anarquia) e a distopia (arbitrariedade), sou como Suassuna, um “realista esperançoso” nas trilhas de Sócrates, a lutar contra a “ignorância”. Gratidão e parabéns aos grandes mestres, que se põem e nos mostram o caminho da sabedoria.
J. Lino
Rio, 15/10/24





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